Legislação sobre o aborto
Imagem e legendas: site de WOW
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Na Europa, Portugal, Polónia, Irlanda e Malta são os países com as leis mais restritivas. A influência da Igreja Católica na mentalidade e nas decisões de carácter político é inegável. Por isso apetece-me narrar-vos um pequeno episódio.
Pouco tempo depois do primeiro referendo em Junho de 1998 - em que 31,8% dos eleitores foram votar e 50,5% destes votou contra o aborto - viajei até França. O referendo em Portugal tinha sido noticiado, pelo que várias pessoas me abordaram revelando a sua incompreensão. Não percebiam como, no final do século XX, ainda era possível a penalização do aborto num país da CE. Eu, que lamentava a situação, cheguei a ficar irritada com uma certa sobranceria. Infelizmente, não consegui dar-lhes a explicação histórica ou sociológica mágica que pretendiam.
Das conversas que tive, houve uma que me bateu mais forte. A mãe do meu marido, francesa, era uma pessoa muito católica, e, talvez por padecer de uma doença que ela sabia incurável, sentia-a muito próxima da sua crença e do seu Deus. Foi ela que me colocou uma pergunta muito simples, com a curiosidade e o respeito que lhe eram habituais: "então, como fazem os casais?".
Responder-lhe que os casais recorriam ao aborto clandestino, e que existia uma rede na sombra, composta por diversos tipos de estabelecimentos, clínicos ou não clínicos, com pessoal qualificado e nem por isso, soou tão mal, que ficámos as duas em silêncio.
Perguntei-lhe então como enquadravam em França, do ponto de vista teológico, a questão do aborto. Ela falou-me do "recurso ao mal menor", uma proposição clássica da Igreja. Numa situação de escolha difícil, opta-se pela alternativa que cause o menor mal. No caso concreto em que uma mulher tenha que escolher entre a sua felicidade e o respeito a uma vida humana potencial, nada impede de pensar que é uma decisão ética e religiosamente aceitável optar pela própria felicidade.
Metidos no nosso casulo luso, esquecemos que existe pluralidade no discurso religioso católico, mesmo se, oficialmente, tal discurso pretenda apresentar-se como monolítico e dogmático. No caso do aborto, não há uma opinião católica única, exclusiva, com fundamento teológico.
Os católicos portugueses, polacos, irlandeses e malteses são a minoria que, na Europa, ainda está presa à visão mais intransigente da Santa Sé.
Se nos informarmos um pouco sobre esta matéria, descobrimos que, desde os primeiros séculos de cristianismo, esta diversidade de pensamento está presente nas discussões eclesiásticas e entre teólogos. Sem nenhuma pretensão de expert, sugiro Os Escritos (Confissões) de Santo Agostinho, que expressavam a posição geral da Igreja. Por um lado, condenava o controle da natalidade e o aborto - porque destruiam a associação entre o acto conjugal e a procriação - e por outro lado, não entendia o aborto como homicídio. Santo Agostinho escreve:
"A grande interrogação sobre a alma não se decide apressadamente com juízos não discutidos e opiniões imprudentes; de acordo com a lei, o aborto não é considerado um homicídio, porque ainda não se pode dizer que exista uma alma viva em um corpo que carece de sensação uma vez que ainda não se formou a carne e não está dotada de sentidos"
in Jane Hurst, "A História das ideias sobre o aborto na Igreja Católica", Publicações CDD, SP, 1999
Uma outra doutrina, bem pouco conhecida pelos/as fiéis, que fundamenta a diversidade de opiniões quando se estabelece um debate moral é a doutrina do Probabilismo. Elaborada por teólogos católicos no século XVII, baseia-se no conceito de que uma obrigação moral que provoque dúvida não se pode impor como se fosse indiscutível. O princípio fundamental é "Onde há dúvida, há liberdade".
Estas são posições antigas, mas cada vez mais válidas, na sociedade plural em que vivemos.
Quando a Igreja Católica, em Portugal, afirma que se vai envolver na campanha pelo NÃO, caso seja aprovado o referendo, "porque (o aborto) não é apenas uma questão religiosa mas também de consciência" (desculpa de mau pagador num período em que a defesa da laicidade do Estado é cada vez mais afirmada), questiono-me sobre o respeito desta Igreja pelos crentes. Que dignidade lhes é conferida, se devem renunciar à sua liberdade e capacidade moral para tomar decisões sobre as suas vidas, nomeadamente no que se refere à sexualidade e ao momento em que têm filhos?
Da conversa que vos relatei, houve outro pormenor que me chamou a atenção. O problema do aborto deve ser colocado como um problema do casal e não apenas da mulher. Nos debates públicos, contra ou a favor da despenalização do aborto, habituamo-nos de tal forma a uma argumentação centrada na mulher, que esquecemos o efeito contraproducente da mesma. Já era tempo dos "movimentos pela defesa da vida" perceberem que o Adão de hoje pega na maça e que não são apenas as Evas a pecar e a precisar da luz e caridade cristãs. Se os defensores da despenalização do aborto deixassem cair o feminismo tresloucado, também só teríamos a ganhar! Qualquer um destes discursos fomenta a desresponsabilização do elemento masculino, no domínio da anticoncepção ou nas situações de gravidez não desejada.
Curiosamente, ninguém parece dar-se conta do paradoxo. Nos mesmos debates, é habitual a reinvindicação de novas políticas de educação sexual e de planeamento familiar. Mas, mais uma vez, só as primeiras parecem direccionadas para ambos os sexos.
Pouco tempo depois do primeiro referendo em Junho de 1998 - em que 31,8% dos eleitores foram votar e 50,5% destes votou contra o aborto - viajei até França. O referendo em Portugal tinha sido noticiado, pelo que várias pessoas me abordaram revelando a sua incompreensão. Não percebiam como, no final do século XX, ainda era possível a penalização do aborto num país da CE. Eu, que lamentava a situação, cheguei a ficar irritada com uma certa sobranceria. Infelizmente, não consegui dar-lhes a explicação histórica ou sociológica mágica que pretendiam.
Das conversas que tive, houve uma que me bateu mais forte. A mãe do meu marido, francesa, era uma pessoa muito católica, e, talvez por padecer de uma doença que ela sabia incurável, sentia-a muito próxima da sua crença e do seu Deus. Foi ela que me colocou uma pergunta muito simples, com a curiosidade e o respeito que lhe eram habituais: "então, como fazem os casais?".
Responder-lhe que os casais recorriam ao aborto clandestino, e que existia uma rede na sombra, composta por diversos tipos de estabelecimentos, clínicos ou não clínicos, com pessoal qualificado e nem por isso, soou tão mal, que ficámos as duas em silêncio.
Perguntei-lhe então como enquadravam em França, do ponto de vista teológico, a questão do aborto. Ela falou-me do "recurso ao mal menor", uma proposição clássica da Igreja. Numa situação de escolha difícil, opta-se pela alternativa que cause o menor mal. No caso concreto em que uma mulher tenha que escolher entre a sua felicidade e o respeito a uma vida humana potencial, nada impede de pensar que é uma decisão ética e religiosamente aceitável optar pela própria felicidade.
Metidos no nosso casulo luso, esquecemos que existe pluralidade no discurso religioso católico, mesmo se, oficialmente, tal discurso pretenda apresentar-se como monolítico e dogmático. No caso do aborto, não há uma opinião católica única, exclusiva, com fundamento teológico.
Os católicos portugueses, polacos, irlandeses e malteses são a minoria que, na Europa, ainda está presa à visão mais intransigente da Santa Sé.
Se nos informarmos um pouco sobre esta matéria, descobrimos que, desde os primeiros séculos de cristianismo, esta diversidade de pensamento está presente nas discussões eclesiásticas e entre teólogos. Sem nenhuma pretensão de expert, sugiro Os Escritos (Confissões) de Santo Agostinho, que expressavam a posição geral da Igreja. Por um lado, condenava o controle da natalidade e o aborto - porque destruiam a associação entre o acto conjugal e a procriação - e por outro lado, não entendia o aborto como homicídio. Santo Agostinho escreve:
"A grande interrogação sobre a alma não se decide apressadamente com juízos não discutidos e opiniões imprudentes; de acordo com a lei, o aborto não é considerado um homicídio, porque ainda não se pode dizer que exista uma alma viva em um corpo que carece de sensação uma vez que ainda não se formou a carne e não está dotada de sentidos"
in Jane Hurst, "A História das ideias sobre o aborto na Igreja Católica", Publicações CDD, SP, 1999
Uma outra doutrina, bem pouco conhecida pelos/as fiéis, que fundamenta a diversidade de opiniões quando se estabelece um debate moral é a doutrina do Probabilismo. Elaborada por teólogos católicos no século XVII, baseia-se no conceito de que uma obrigação moral que provoque dúvida não se pode impor como se fosse indiscutível. O princípio fundamental é "Onde há dúvida, há liberdade".
Estas são posições antigas, mas cada vez mais válidas, na sociedade plural em que vivemos.
Quando a Igreja Católica, em Portugal, afirma que se vai envolver na campanha pelo NÃO, caso seja aprovado o referendo, "porque (o aborto) não é apenas uma questão religiosa mas também de consciência" (desculpa de mau pagador num período em que a defesa da laicidade do Estado é cada vez mais afirmada), questiono-me sobre o respeito desta Igreja pelos crentes. Que dignidade lhes é conferida, se devem renunciar à sua liberdade e capacidade moral para tomar decisões sobre as suas vidas, nomeadamente no que se refere à sexualidade e ao momento em que têm filhos?
Da conversa que vos relatei, houve outro pormenor que me chamou a atenção. O problema do aborto deve ser colocado como um problema do casal e não apenas da mulher. Nos debates públicos, contra ou a favor da despenalização do aborto, habituamo-nos de tal forma a uma argumentação centrada na mulher, que esquecemos o efeito contraproducente da mesma. Já era tempo dos "movimentos pela defesa da vida" perceberem que o Adão de hoje pega na maça e que não são apenas as Evas a pecar e a precisar da luz e caridade cristãs. Se os defensores da despenalização do aborto deixassem cair o feminismo tresloucado, também só teríamos a ganhar! Qualquer um destes discursos fomenta a desresponsabilização do elemento masculino, no domínio da anticoncepção ou nas situações de gravidez não desejada.
Curiosamente, ninguém parece dar-se conta do paradoxo. Nos mesmos debates, é habitual a reinvindicação de novas políticas de educação sexual e de planeamento familiar. Mas, mais uma vez, só as primeiras parecem direccionadas para ambos os sexos.
(continua)
Adenda_______________
Comentário de Lauro António:
Bons “posts” sobre o IVG, mas julgo que o caminho não é o melhor. Há motivos para muitas dúvidas e equívocos. O que se invoca a nosso favor, também pode ser invocado contra. Por exemplo, a doutrina do “Probabilismo”. Explicas: “Elaborada por teólogos católicos no século XVII, baseia-se no conceito de que uma obrigação moral que provoque dúvida não se pode impor como se fosse indiscutível. O princípio fundamental é "Onde há dúvida, há liberdade". Já viste que a liberalização da IVG provoca dúvidas? Logo há liberdade para a proibir.
De resto “ Estas são posições antigas, mas cada vez mais válidas, na sociedade plural em que vivemos.” Por que razão as “posições antigas” são cada vez mais válidas? Muito pelo contrário, acho intolerável a Inquisição, apesar de ser uma posição antiga. Logo, o simples facto de serem posições antigas, não as faz melhores ou piores. Como também muito bem dizes, as questões tem de ser colocadas no seu tempo. E enfrentar abertamente as posições do seu tempo, neste caso do nosso tempo. Aí a opinião da Igreja, oficial, papal, não deixa dúvidas e é sobre essa que teremos de reflectir.
O caso do aborto, ou da IVG, só tem uma questão a que nos devemos reportar: cada casal, porque não há IVG sem homem e mulher, tem de decidir em liberdade o que quer fazer. Para haver essa liberdade, é preciso que ela esteja consignada na lei. De resto, não discuto posições católicas ou feministas ou outras quaisquer, porque a partir do momento que exista essa liberdade de opção, cada um fará o que quiser, o que a sua consciência e a sua condição ditarem. Para quê discutir a posição dos católicos, dos ateus, os xiitas, dos turcos ou dos índios? Não tenho nada a ver com o que cada um pensa. Tenho a ver com a liberdade de cada um poder pensar o que quiser. E não vou rebater os argumentos dos outros, pois estou a entrar no seu jogo. Não quero ter “a consciência de outros”, quero poder “exercer a minha”.Não quero mudar “a consciência de outros”, porque também não quero que me obriguem a mudar a minha. Quero lá saber se o aborto era permitido no século XII ou no XVII. Não vivo no século XII nem no XVII, e nesses séculos havia tanta outra coisa de que discordo, que se concordo com uma é mera coincidência. Todas estas discussões visam apenas fornecer argumentos ao NÃO. Eu voto SIM, inclusive para os católicos poderem continuar a não exercer a IVG, se quiserem. E outros a praticarem, se assim o julgarem necessário. E outros ainda nunca praticarem a cópula sequer, se não tiverem prazer nisso e não quiserem aumentar o índice demográfico. Enfim, voto sim porque quero a liberdade de eu decidir como acho justo e o meu contrário decidir o inverso. Não discuto argumentos. Discuto a liberdade de decidir. É a única coisa em causa neste referendo. (...)
Esclarecimento:
LA, provavelmente tens razão, mas a conclusão a que chego é esta: "Os católicos portugueses, polacos, irlandeses e malteses são a minoria que, na Europa, ainda está presa à visão mais intransigente da Santa Sé."
Porque existe de facto, mesmo na Santa Sé, teólogos com um pensamento distinto do "oficial". O "recurso ao mal menor" não é dos séculos XI ou XVII, é de agora. De resto, é com base nesse postulado que a Igreja, noutros países ditos católicos, enquadrou a lei "laica" que permite a realização do aborto a pedido da mulher.
Porquê que isto me parece importante? Para deixar claro que não existem verdades absolutas. Para tranquilizar aqueles que, como eu, porque educados em meios conservadores, se descobrem a defender a despenalização do aborto, sempre com um nó na garganta e um ligeiro sentimento de culpa.
Eu acho que foi também por isso que em Junho de 1998, apenas 31% dos eleitores foram votar.
Bons “posts” sobre o IVG, mas julgo que o caminho não é o melhor. Há motivos para muitas dúvidas e equívocos. O que se invoca a nosso favor, também pode ser invocado contra. Por exemplo, a doutrina do “Probabilismo”. Explicas: “Elaborada por teólogos católicos no século XVII, baseia-se no conceito de que uma obrigação moral que provoque dúvida não se pode impor como se fosse indiscutível. O princípio fundamental é "Onde há dúvida, há liberdade". Já viste que a liberalização da IVG provoca dúvidas? Logo há liberdade para a proibir.
De resto “ Estas são posições antigas, mas cada vez mais válidas, na sociedade plural em que vivemos.” Por que razão as “posições antigas” são cada vez mais válidas? Muito pelo contrário, acho intolerável a Inquisição, apesar de ser uma posição antiga. Logo, o simples facto de serem posições antigas, não as faz melhores ou piores. Como também muito bem dizes, as questões tem de ser colocadas no seu tempo. E enfrentar abertamente as posições do seu tempo, neste caso do nosso tempo. Aí a opinião da Igreja, oficial, papal, não deixa dúvidas e é sobre essa que teremos de reflectir.
O caso do aborto, ou da IVG, só tem uma questão a que nos devemos reportar: cada casal, porque não há IVG sem homem e mulher, tem de decidir em liberdade o que quer fazer. Para haver essa liberdade, é preciso que ela esteja consignada na lei. De resto, não discuto posições católicas ou feministas ou outras quaisquer, porque a partir do momento que exista essa liberdade de opção, cada um fará o que quiser, o que a sua consciência e a sua condição ditarem. Para quê discutir a posição dos católicos, dos ateus, os xiitas, dos turcos ou dos índios? Não tenho nada a ver com o que cada um pensa. Tenho a ver com a liberdade de cada um poder pensar o que quiser. E não vou rebater os argumentos dos outros, pois estou a entrar no seu jogo. Não quero ter “a consciência de outros”, quero poder “exercer a minha”.Não quero mudar “a consciência de outros”, porque também não quero que me obriguem a mudar a minha. Quero lá saber se o aborto era permitido no século XII ou no XVII. Não vivo no século XII nem no XVII, e nesses séculos havia tanta outra coisa de que discordo, que se concordo com uma é mera coincidência. Todas estas discussões visam apenas fornecer argumentos ao NÃO. Eu voto SIM, inclusive para os católicos poderem continuar a não exercer a IVG, se quiserem. E outros a praticarem, se assim o julgarem necessário. E outros ainda nunca praticarem a cópula sequer, se não tiverem prazer nisso e não quiserem aumentar o índice demográfico. Enfim, voto sim porque quero a liberdade de eu decidir como acho justo e o meu contrário decidir o inverso. Não discuto argumentos. Discuto a liberdade de decidir. É a única coisa em causa neste referendo. (...)
Esclarecimento:
LA, provavelmente tens razão, mas a conclusão a que chego é esta: "Os católicos portugueses, polacos, irlandeses e malteses são a minoria que, na Europa, ainda está presa à visão mais intransigente da Santa Sé."
Porque existe de facto, mesmo na Santa Sé, teólogos com um pensamento distinto do "oficial". O "recurso ao mal menor" não é dos séculos XI ou XVII, é de agora. De resto, é com base nesse postulado que a Igreja, noutros países ditos católicos, enquadrou a lei "laica" que permite a realização do aborto a pedido da mulher.
Porquê que isto me parece importante? Para deixar claro que não existem verdades absolutas. Para tranquilizar aqueles que, como eu, porque educados em meios conservadores, se descobrem a defender a despenalização do aborto, sempre com um nó na garganta e um ligeiro sentimento de culpa.
Eu acho que foi também por isso que em Junho de 1998, apenas 31% dos eleitores foram votar.
que treta este referendo!...
ResponderEliminarMais uma...
Chega de humilhação!
Este direito é inerente à condição humana! Direito humano!...
Convido os amigos a lerem meu texto "Aborto: liberdade ou tirania?" no blog http://familianazare.blogspot.com
ResponderEliminarEspero que seja útil