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14.2.06

Autor, Autor


Foi graças ao humor que David Lodge me apanhou. Estava eu a ler A Troca e dei comigo às gargalhadas na cama, e mais gargalhadas, bem sonoras, e a pensar que nenhum livro tinha esse poder, que normalmente os livros nos fazem sorrir ou sentir muito bem, mas não nos fazem quebrar o silêncio. Que essa é uma espécie de regra da leitura, silêncio no momento em que as palavras do escritor são absorvidas por nós. E se as emoções são negativas e chegarmos à intrusão das lágrimas, no máximo ouvimos uma fungadela. Mas A Troca e depois todos os livros que se seguiram (percebi ontem que me escapou Longe do Abrigo), uns mais que outros, fizeram com que quebrasse o silêncio da leitura. David Lodge era terapêutico! Não pensava nele como um excelente escritor até... já não sei que livro, talvez O Mundo é Pequeno. Via-o como um excelente guionista, todos os livros eram muito visuais, com um rasgo particular para comédias, e era acutilante na revelação dos non-senses do quotidiano, na sublimação de determinados preconceitos e estereótipos sociais. Os seus temas eram recorrentes - a vida académica, o contexto da produção cultural ou científica, a vida sexual dos casais católicos antes do Vaticano perdoar o uso da pílula - mas os seus livros continuavam a ser eficazes. Quando ouvi falar do seu último livro, não fiquei surpreendida. David Lodge é professor de literatura e os seus protagonistas normalmente são também docentes, os mais famosos, de literatura, ou então são escritores ou, pelo menos, são personagens que têm que lidar com a produção de textos. Mas Autor, Autor é um livro completamente distinto.

David Lodge escreve sobre Henry James. Eu nunca li Henry James, pelo que comecei este livro convencida de que ia perder (muitas vezes) o sentido da obra e de que me iria aborrecer imenso. Enquanto não ler o Mestre não vou saber exactamente o que perdi, mas fiquei encantada com a escrita. Diz o autor que quase tudo o que acontece nesta história se baseia em fontes factuais. Com uma excepção insignificante, todas as personagens existiram realmente. As citações dos seus livros, peças de teatro, artigos, cartas, diários, etc., correspondem às suas próprias palavras. A pesquisa que DL fez é notável e a forma como compôs esta obra é excepcional. Todos os factos se ligam com naturalidade, a montagem é subtil, pelo que a leitura é agradável e fluida. George du Maurier, Bernard Shaw, Oscar Wilde são alguns dos personagens que se cruzam na vida ou na plateia dos teatros com Henry James. Mas o mais interessante para mim não foram os detalhes de natureza biográfica, foi o exercício de composição. E o estilo adoptado, é o de Henry James? Não sei, mas ouve-se o Mestre. David Lodge usa uma linguagem e um ritmo narrativo coerentes com a época em que se situa o romance (final sec. XIX, início sec. XX). Entramos completamente no n° 21 de Carlyle Mansions ou na Lamb House em Rye, as casas do escritor, e nos vários ambientes que o protagonista frequenta. Mas sobretudo, entramos na mente do escritor Henry James, seguimos os entusiasmos e as hesitações, as mudanças de humor, os raciocínios que o levam a seguir determinadas opções estéticas. O escritor David Lodge, esse, optou por apagar o corpo de Henry James, deixando-o celibatário e casto toda a vida (no prefácio existe uma pequena referência à questão da sexualidade, e as opiniões são coincidentes). A sua intenção é clara, o título não engana. Este é um livro que versa sobre o processo de criação artística.

E é, em si, um acto de criação exemplar.

Link extra: artigo da Visão

3 comentários:

  1. conheci por estes dias David Lodge. Estou nas primeiras páginas da "Terapia" e estou agradavelmente satisfeito com o que estou a ler.

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  2. Ainda não li esse livro, mas já o tenho comigo... Vou lê-lo com bastante curiosidade, pois gosto muito de Henry James. Ele é o "inventor" do romance psicológico (não é por acaso que é irmão de William James). Recomendo vivamente "Retrato de uma Senhora".
    Voltando a Lodge, adorei "Terapia".

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  3. Já li todos de david Lodge excepto este último. Está na lista de compras. Se gostas de Lodge com toda a certeza gostarás de Tom Sharpe!

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