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7.12.05

Por que somos portugueses?


Paula Rego

Por que somos portugueses? Ela pergunta.

Pode ser difícil definir, mas bastou-me entrar num avião, pela primeira vez sem bilhete de volta, apenas ida, para perceber como sou portuguesa. Juro-vos que "vestia" de luto e esperava que todos partilhassem comigo essa estranha dor. As ondas devolveram-me mais cedo do que esperava à Pátria (afinal tão) amada. Mas, desses anos vividos à distância, ficaram muitas certezas: sou muito mais portuguesa do que imaginava; é um desespero ser portuguesa. Vamos por partes.

Convém explicar-vos que nasci em Angola mas que vivi apenas os primeiros seis anos da minha vida nesse país. No entanto, à força de me ouvir dizer «Dundo-Chitato-Portugália», uma espécie de música exótica inscrita no local de nascimento do meu primeiro passaporte, essa origem acabou por me invadir também. Caetano canta a propósito de outras essências o que eu sinto por Angola e África, é qualquer coisa que por dentro mexe. Quando me vêem dançar, os amigos dizem pois, que ela é africana. e eu acredito. Acredito que os ritmos que ouvi nessa primeira infância estejam cá dentro. como outras coisas que cá dentro mexem quando agora adulta viajo até esse Continente.
Mas lá sou portuguesa ou já sou mais portuguesa que angolana. Faltam-me códigos, linguajares, mitos, vivências e a colagem da História de um país à minha própria história. Essa colagem aconteceu aqui. no Puto. o país onde memória e consciência amadureceram.

Mas voltemos a essa viagem de avião, ou ao novo destino que me esperava. Aterrei num país com maior grau de desenvolvimento (conceito de difícil definição, por melhores que sejam os indicadores socio-económicos).
Sabia e confirmei. Não ouvia a minha língua. Nunca acordava com a minha luz. Ninguém abria as janelas demanhã para deixar entrar o ar ou para sacudir tapetes. Concluí cedo que língua, luz e comportamentos do quotidiano são os principais factores de identidade nacional. e que seria sempre um estrangeiro nesse meu novo país. Mas estas são as nossas coisas íntimas a afastar-nos dos outros. Depois existe o que pode afastar o outro de nós. Dizer Portugal pode afastar. No estrangeiro é mais fácil ler nos olhos dos outros o que é ser português. Percebemos como o olhar de curiosidade face ao "estrangeiro" se transforma em esgar de irmandade ou desprezo, de admiração ou pesar, de confiança ou temor. A sul do Equador, à conta da História, todos esses sentimentos são possíveis. A Norte, prevalece a brandura. O imigrante português é o mais bem integrado na sociedade francesa, li. Deixa cair a língua de origem, em casa fala frequentemente em francês, sobretudo se tem filhos, professa a mesma religião, é um bom trabalhador. A brandura dos nossos comportamentos..., que gera nos outros brando respeito, brando desprezo, brando pesar. Variantes de um enorme desconhecimento. Concluí que ser português é também sentir um brando orgulho de ser português. e isso nunca soube aceitar.
Como pode não existir uma escola ou liceu português numa metrópole que concentra mais de um milhão de portugueses? Como é possível ser tão difícil encontrar escritores portugueses traduzidos, ainda mais no ano em que o Nobel da Literatura foi atribuído a um português? Como aceitar que nenhuma marca portuguesa seja comercializada em estabelecimentos comerciais (para além das ditas típicas «mercearias portuguesas»)? O que sentir face à absoluta ausência de menções ao nosso país em qualquer jornal ou emissão televisiva (a não ser para falar de uma ponte que ruiu, de incêndios que alastram ou de escândalos casapianos!)?

Não censuro o olhar do outro. Censuro o que é «meu». Para quem está longe, olhando o país através das emissões televisivas "internacionais", ser português é gostar de fado, de Fátima e de futebol. Os três «f» ainda, para glorificar e perdoar a miséria. Por acaso, para quem cá vive, às vezes também parece que é assim. Mas só parece.
Aqui, no rectângulo, já sabemos que somos mais do que isso. Este quadro da Paula Rego é apenas um espelho do passado. mesmo que sejam muitos os tempos da nossa época. Agora, somos os que estão no meio do globo, na confluência. da História e ventos do Sul com a História e ventos do Norte. Entre o passado e o futuro. E por isso somos únicos.

Será assim tão difícil inverter as correntes? Aceitarmos "aculturar-nos" pelos povos que falam a nossa língua e, ao mesmo tempo, entrar sem brandura nos centros que nos vêem como periferia. num movimento que reforce a lusografia, a cultura e a economia. Para que a teórica unicidade ("fractal") dentro das várias Comunidades nos sirva para alguma coisa...


P.S.: dou-me conta de que, mais do que a viver no passado ou projectando um prodigioso futuro, somos (apenas) aqueles que estão sempre à espera que o presente passe depressa.

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