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9.9.05

Lx II


Como bem me lembrou a Isabela, "os anos 80 foram a minha geração de 60 mas acabaram, irremediavelmente". O tempo é outro, cidades e pessoas respiram outra atmosfera, pelo que até os lisboetas podem sentir saudades da Lisboa desse tempo.

Nos anos 80, a situação política acalmara mas os espíritos estavam ainda agitados e frenéticos com a conquista da liberdade, o desaparecimento da censura, e a entrada no país de todas as novas (para nós) influências e correntes. Queríamos "participar", havia curiosidade. Foi bom ter 18/20 anos nessa altura pela "coincidência" de ânsias entre esse Tempo e o meu, pessoal. Politicamente, era difícil não tomar partido, mesmo sem militâncias formais. E do ponto de vista cultural, abriam-se janelas e testavam-se caminhos. A cidade experimentava também novas formas de estar. Alguém se lembra da primeira Animação do Chiado? Creio que foi em 85, actores e performers actuavam nas ruas. A SN de Belas Artes, ali ao pé, "mexia" e envolvia. Acabei mascarada de palhaço a cumprimentar as crianças que passavam. As bancas de artesanato proliferavam. Ouvia-se música portuguesa, muito Zeca Afonso, Fausto, Sérgio Godinho. Os Trovante revolucionavam o meio, enchiam o Coliseu e provocavam histeria junto das meninas. Mas também me lembro de ouvir Chico Fininho enquanto fazia o cubo mágico. Na faculdade, os professores mais liberais deixavam-nos beber cerveja nas aulas e porque ficava ali ao pé, até tivemos direito a aulas no anfiteatro ao ar livre da Gulbenkian. O primeiro a levar-nos até lá foi o Prof. de Semiologia, Pedro Frade, que para grande orgulho nosso fora entrevistado pelo JL a propósito da tese de mestrado que originaria o seu livro Figuras de Espanto, e que nos incutiu o gosto por Barthes e Baudrillard. Apetece-me falar dele e do Dr. João Loureiro, o nosso professor de Economia que no ano a seguir a nos ter dado aulas, já saía connosco para o Bairro Alto e, apaixonado por Gershwin, nos levava às Noites Longas para ouvirmos uma orquestra de jazz. Líamos Escuta, Zé Ninguém! (Wilhelm Reich) ou Nietzsche ou Sartre ou Mário-Henrique Leiria e os seus Contos do Gin-Tonic ou O Memorial do Convento de Saramago ou Memória de Elefante de Lobo Antunes ou pequenos livrinhos sobre Lenine, Marx e mesmo Catarina Eufémia. O Macintosh foi lançado (1984) mas o gabinete de informática demorou algum tempo a ser criado, pelo menos no Departamento de Sociologia. Aceitavam-se trabalhos escritos à mão porque nem todos tinham... máquina de escrever! E Lisboa continuava a convidar-nos para novas propostas! O Frágil, de Manuel Reis, era o must. Aí podíamos encontrar alguns dos pintores da nova geração. Abriam novas galerias de arte, discutia-se estética e o valor da arte. Pedro Proença e Pedro Portugal fundaram o projecto de uma revista intitulada Homeostética, a partir da qual se viria a formar o grupo Homeostético (colectivo que integrava também, no início, os nomes de Manuel João Vieira, Ivo e Xana...). Recordo-me de assistir a uma vernissage em que "Sanita Pintor" pintou com um spray o preço da obra na tela, 500 CONTOS. Diria Mário Murteira, "como se, por um golpe de mágica, tivéssemos saltado a pés juntos dum capitalismo arcaico e asfixiante para a sociedade perfeita com que sonhara o jovem Marx"!

Lisboa, a capital do país, reunia todos os tempos. E foi bom cirandar pela cidade... acreditando que, pelo menos a nossa vida, poderia ser perfeita!


João Loureiro e Pedro Frade, referidos neste post, faleceram no início dos anos 90. A FCSH da Universidade Nova perdeu então, subitamente, dois dos seus professores assistentes mais jovens e promissores. Lembro-me de passar na Av. de Berna e de ver a bandeira a meia haste. Tinha começado a trabalhar, os colegas de curso estavam dispersos pelo país, e então quis fugir dali! O problema da memória é que ela também não perdoa...

3 comentários:

  1. Gostei muito de ler este post, não sei bem porquê. Não leves a mal, mas cheguei a sentir saudades duma memória que não é minha. :)

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  2. Olá MRF, cá estou eu a tentar regressar a blogsfera, mas custa um pouco...

    Eu fui poucas vezes s Lisboa na minha vida, e por essa razão não conheço muito, mas com estes teus dois posts sobre Lisboa, parace que fiquei a conhecer como se fosse a minha aldeia... Gostei...

    De qualquer forma, eu gosto é do campo...as cidades a mim destroem-me o espirito.

    Beijitos

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