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30.11.04

A Condição Humana III

Sobre a Ciência

"Nem as especulações dos filósofos, nem a imaginação dos astrónomos chegaram alguma vez a constituir verdadeiros acontecimentos. (...) as ideias vêm e vão, duram algum tempo, podem até alcançar uma certa imortalidade própria, dependendo do seu poder de iluminar e esclarecer (...) O que Galileu fez e que ninguém tinha feito antes foi usar o telescópio..." p. 323

"Se hoje os cientistas nos dizem que podemos presumir com igual validade que a Terra gira à volta do Sol ou que o Sol gira em torno da Terra, que ambos os pressupostos se aplicam a fenómenos observados, e que a diferença está apenas na escolha do ponto de referência (...) Significa, antes, que transferimos o ponto de vista arquimediano um pouco mais além da Terra, para um ponto do universo onde nem a Terra nem o Sol são o centro de um sistema universal. (...) No que diz respeito às realizações práticas da ciência moderna, esta mudança do antigo sistema heliocêntrico para um sistema sem centro fixo é, sem dúvida, tão importante como a mudança original do conceito de um mundo geocêntrico para o de um mundo heliocêntrico. Só agora nos afirmamos como seres universais..." p. 327

" o tremendo aumento do poder humano de destruição (...) não menos terrível e não menos difícil de compreender é o novo poder de criar (...) povoar o espaço à volta da Terra com estrelas feitas pelo homem (...) Emprego deliberadamente a palavra criar para indicar que estamos, na verdade, a fazer aquilo que todas as eras antes de nós julgavam ser a prerrogativa exclusiva da acção divina." pp 333-334

"A história mostra claramente que a moderna tecnologia resultou não da evolução daquelas ferramentas que o homem sempre havia inventado para o duplo fim de atenuar o labor e de erigir o artifício humano, mas exclusivamente da busca de conhecimento inútil, inteiramente desprovido de senso prático. Assim, o relógio (...) inventado exclusivamente para a finalidade teórica de realizar certas experiências com a natureza. É certo que esta invenção, logo que a sua utilidade prática foi percebida, mudou o ritmo e a própria fisionomia da vida humana; mas isso, do ponto de vista dos seus inventores, foi um mero acidente. (...) é pouco provável que o nosso mundo condicionado à técnica pudesse sobreviver, e muito menos continuar a desenvolver-se, se conseguíssemos convencer-nos de que o homem é, antes de tudo, uma criatura prática." p. 355

" A mudança do por que e do o que para o como implica que os verdadeiros objectos do conhecimento já não são coisas ou movimentos eternos, mas processos, e portanto o objecto da ciência já não é a natureza ou o universo mas a história - a história de como vieram a existir a natureza, a vida ou o universo. (...) o processo de evolução, conceito-chave das ciências históricas, tornou-se o conceito central também das ciências físicas." p. 363

"Retemos ainda a capacidade de agir, pelo menos no sentido de desencadear processos, muito embora esta capacidade se tenha tornado prerrogativa dos cientistas, que ampliaram a esfera dos negócios humanos ao ponto de extinguir a consagrada linha divisória e protectora entre a natureza e o mundo humano. (...) parece bem mais justo que os feitos desses cientistas tenham assumido maior valor como notícia e maior importância política que os feitos administrativos e diplomáticos da maioria dos chamados estadistas." p. 394

"Mas a acção dos cientistas, que intervém (...) não com a textura das relações humanas, não tem o carácter revelador da acção nem a capacidade de produzir histórias e tornar-se histórica - carácter e capacidade que, juntos, constituem a própria fonte do sentido que ilumina a existência humana." p. 394


in Arendt, Hannah, A Condição Humana, Relógio d' Agua, 2001

Aos 35 investigadores da Unidade de Desenvolvimento de Produto da Vulcano

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