27.4.14

Vasco Graça Moura

Há muitos anos, a Anabela Mota Ribeiro tinha uma programa televisivo em que entrevistava casais. Vasco Graça Moura e a mulher de então, Rosarinho, foram um dos casais convidados. Nunca mais esqueci a crítica da minha homónima, que se queixava de que ele era demasiado pró-Cavaco (Primeiro-Ministro na altura!?), demasiado, demasiado! E eu a gostar tanto dela. Porque era verdade, era verdade! Mas dep...ois ele começou a falar das filhas e leu alguns poemas que escrevera para elas. Belíssimos! Quanta sensibilidade, quanto amor! Vasco Graça Moura era grande na sua arte e imenso no seu saber humanista e erudito. De resto, preconceito meu, era essa imensa Cultura que me fazia não aceitar a sua associação àquele pequeno poder cinzentão e deprimente (que se perpetua...). E comprava os seus livros e admirava as suas épicas traduções, sempre segura da qualidade, sempre ligeiramente irritada. A morte lava as pequenas fúrias. Estou triste pela sua morte.


As meninas

as minhas filhas nadam. a mais nova
leva nos braços bóias pequeninas,

a outra dá um salto e põe à prova
o corpo esguio, as longas pernas finas:
entre risadas como serpentinas,
vai como a formosinha numa trova,
salta a pés juntos, dedos nas narinas,
e emerge ao sol que o seu cabelo escova.
a água tem a pele azul-turquesa
e brilhos e salpicos, e mergulham
feitas pura alegria incandescente.
e ficam, de ternura e de surpresa,
nas toalhas de cor em que se embrulham,
ninfinhas sobre a relva, de repente.

3.4.14

Manhã

Está a chover a potes, o que não dá jeito nenhum para levar os ténis novos e a t-shirt verde que condiz tão bem, os primeiros presentes de aniversário... Diziam que hoje ia melhorar e é isto! Se tem algum jeito vestir impermeável por cima desta roupa! Mas vá, vamos, já estamos atrasadas... Na rotunda, a nossa saída está tapada por um carro que decidiu estacionar ali. De tempos a tempos, acontece. ...É por ser uma rua estreita, deve ser, não percebem!? Apita e ele sai. Obrigada, pá! Em frente à escola, a Ana ainda não tinha conseguido por a écharpe bem... Mãe, põe! Estamos atrasadas, diz a Sofia! Pára o carro que não dá para o pé ficar no travão enquanto te torces toda para lhe chegar ao pescoço... Olha, deixa estar! Ai é? Até logo, meninas! Avança e estaciona ao pé do mercado. Nada como comprar fruta, legumes e flores pela manhã! Ao entrar, ups, salta que ainda levas um pontapé! O senhor da banca onde vou está em plena acção. Agarra um homem que grita, esperneia, ameaça, sem resultado, que o rapaz é forte e prendeu-o bem. Rua daqui! Apanhado a roubar outra vez! Todos falam. Afinal quem foi apanhado é mesmo mau, só quem não vai à Caixa Geral de Depósitos quando ele vai receber a pensão, é que não sabe. Ficam todos cheios de medo, menos o senhor que o vê sempre, ele não! Mas olha rapaz, diz outro, não é preciso ser herói para pegar nele... Dá-se um empurrão e ele cai logo. Pois, mas tu fugiste, não foi? Vá, vá, mudemos de conversa! Quem deixou aqui o Correio da Manhã? Está toda a gente, incluindo eu, a colocar os sacos com as compras para pesar em cima do jornal. Não importa, diz o mesmo-assim-herói, esse jornal é só escândalos! É, não é? Está a perguntar-me? Pois, não é bem a melhor referência de jornalismo. Ora, diz as verdades, isso é que é, contrapõe bem alto uma senhora. Pois! Que os outros escondem as verdades e esse, pelo menos, diz as coisas como elas são! As narinas abrem e fecham, a senhora ficou irada em dois tempos, olha para mim com ar de "deves achar que me enganas". Paga e diz que sim. Bom dia e vai à banca das flores. Levo estas. Pois nem acredita, há uma senhora que compra sempre essas flores, dessa cor, há várias semanas. É que parece que nem gosta de mais nada, santo Deus! Quer que corte o pé ou a altura está boa? Corte um bocadinho! Estas aguentam-se bem se a água estiver fresquinha. Com este tempo duram mais! Bom dia e vai ao quiosque. Olha lá vem ele? Diga!? Devia ser proibido assustar assim as pessoas! Está a ouvir? Olhe, olhe! Então? Passa por aqui a esta hora todos os dias. A sirene inunda a praça. Não há urgência mas o motorista da ambulância liga-a sempre para passar nos sinais da Avenida. Faz isso duas vezes por dia. Não há direito. Sobressalta. Pensa-se logo o pior pela manhã! Essa não sabia! Pois, mas é verdade. Uma vergonha! Chega-se ao carro e escapou-se à multa da Polícia Municipal. Sorriso. A esta hora ainda não saíram para a rua. É só depois das 9h/9h30 que os carros são varridos a papelinhos. Arranca. Outra rotunda. Camião avariado mesmo no meio. Livra! Mas pronto, o dia só começou agora.

MRF

As minhas meninas


As meninas são minhas, só minhas, na minha ilusão, as minhas meninas no meu coração.


do amor


às minhas duas filhas




... e ela disse que eu vos amava porque vocês são uma extensão de mim, como se o meu corpo e tudo o que eu sou se dilatasse, se estendesse, desdobrado nas duas que sois, e completo nas duas que sois, como se eu fosse com vocês um espaço contido em limites, como se eu fosse um tempo que não expirasse com a minha morte. e eu não consegui dizer que não mas é não. o meu amor por vós tem o fundamento da vossa estranheza, das vossas dores e fragilidades__ que não são minhas, da vossa inocência e esperança__ que não são minhas, da vossa beleza e encanto__ que não são meus. e é imenso. desmesurado. às vezes maior do que as minhas forças e competências. e o amor, esse amor, nasce de um dom que eu tenho e que não vou perder. um dom que se revelou face à vossa estranheza. de vos querer servir bem no amor. de vos dar o que sei ___ e às vezes até a minha ignorância. de vos dar cuidados e beijos. até à exaustão. até parecer que me extingo. e em dias bons, e são muitos os dias bons, até parecer que sou feliz. o que é meu é só esse amor, não vós.