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30.6.05

Sábado



Não compreende logo o que está a ver, embora ache que sim. No primeiro momento, com a sua ansiedade e curiosidade, atribui-lhe proporções planetárias: é um meteoro a arder no céu de Londres, a atravessá-lo da esquerda para a direita, perto do horizonte, mas bem visível dos edifícios altos. (...) Aquilo está a deslocar-se devagar, até majestosamente. (...) É um cometa colorido de amarelo, com o seu habitual núcleo brilhante a arrastar uma cauda feérica. (...)
Mas isto é melhor, mais brilhante, mais rápido, e mais impressionante por ser inesperado. Deve ter-lhes escapado a cobertura nos meios de comunicação. Têm trabalho a mais. Vai acordar Rosalind (...).
Está a dirigir-se para a cama quando ouve um estrondo rouco, um trovão distante que vai aumentando de volume, e pára para ouvir. Isso diz-lhe tudo. (...) Horrorizado, regressa à sua posição na janela. O som vai subindo de volume, numa progressão constante (...).
Apesar das luzes da cidade, os contornos do avião não são visíveis na escuridão da madrugada. O fogo deve ser na asa mais próxima (...) Como a fingir normalidade, as luzes do trem de aterragem vão a piscar, mas o som do motor diz tudo.(...)
Já não está a pensar acordar Rosalind. (...)
O núcleo branco a arder e a sua cauda colorida tornaram-se maiores - nenhum passageiro que estivesse sentado nessa parte do avião poderia sobreviver. É esse o outro elemento familiar - o horror do que não consegue ver. Assistir à morte em larga escala sem ver ninguém morrer. (...)
Se Perowne fosse dado a sentimentos religiosos, a explicações sobrenaturais, diria que foi chamado, que tinha de reconhecer uma ordem escondida, uma inteligência exterior que queria dizer-lhe ou mostrar-lhe qualquer coisa pelo facto de ter acordado com um estado de espírito tão pouco habitual e de ter ido à janela sem nenhum motivo especial. (...)
Pode ter sido um raciocínio deste tipo a causar o fogo no avião. Um homem com uma fé inabalável e uma bomba no salto do sapato.

[Sábado, pp 23 a 28]

Se este fragmento do último livro de McEwan suscitar o efeito pretendido, no próximo Sábado podereis comprar Sábado na livraria O Navio de Espelhos, a partir das 21:30, ou seja, aquando do lançamento do livro "Numa Avenida de Merda" de Ivar Corceiro. Já marcaram na agenda? - Numa Avenida de Merda e Sábado, Sábado.

Domesticidade

Olhando para os últimos posts, não pude deixar de recordar as palavras de Mário Cesariny dirigidas a Luís Amorim de Sousa: ... depois desta estada em sua casa, durante a qual o pude observar, não leve a mal que lhe diga que você tem uma coisa contra si: domesticidade a mais. Muita domesticidade... e a domesticidade, sabe?... é perigosa...


[in Luís Amorim de Sousa, Londres e Companhia, Assírio & Alvim]

Gata Claúdia



Casa Claúdia também soa bem, mas esta é mesmo a minha gata Claúdia. Minha, que é como quem diz "nossa". A gata alegria, terapia, brincadeira, descoberta, entrou na casa e com todos os membros da família vai desenvolvendo relações que se esperam duradoiras. Com a mãe da família comporta-se como um cão, ou se calhar como um filho. Segue-me pela casa, quer mimos, papinha e água fresca, mas agradece que a deixe livre para brincar e crescer. É claro que também barafusta quando se trata de higiéne e vacinas, mas acho que já percebeu que mãe é assim mesmo. Com o pai da casa, mantém uma distância respeitadora... excepto quando a mãe está fora. Talvez estranhe a mudança, afinal era ele que não queria gatos e agora é gugugugu com a Claúdia. Mas com as miúdas da casa é que há verdadeira aprendizagem. Como gata que é, já sentiu de certeza as vantagens e inconvenientes de ser alvo de uma intensa paixão. Ele é arranhadela, ai ai gata!, beija gata, lambe meninas. Partilha de legos, lápis, bolas e papéis em movimento, espantos, "a gata ronrona", miaus para a gata. Ele é colo, muito colo, tanto que "adeus bonecas". Ele é corre, tanto corre, que no fim do dia caiem as três... filhas, de cansaço. E vão dormir à mesma hora. Uff! Mãe e pai sentam-se e ficam a discutir as graças e progressos do dia, as personalidades que se afinam.

A gata, por exemplo, no início era tímida, nem gostava de posar para fotos...

Mulher, casa e gato



Uma pedra na cabeça da mulher; e na cabeça
da casa, uma luz violenta.
Anda um peixe comprido pela cabeça do gato.
A mulher senta-se no tempo e a minha melancolia
pensa-a, enquanto
o gato imagina a elevada casa.
Eternamente a mulher da mão passa a mão
pelo gato abstracto,
e a casa e o homem que eu vou ser
são minuto a minuto mais concretos.

A pedra cai na cabeça do gato e o peixe
gira e pára no sorriso
da mulher da luz. Dentro da casa,
o movimento obscuro destas coisas que não encontram
palavras.
Eu próprio caio na mulher, o gato
adormece na palavra, e a mulher toma
a palavra do gato no regaço.
Eu olho, e a mulher é a palavra.

Palavra abstracta que arrefeceu no gato
e agora aquece na carne
concreta da mulher.
A luz ilumina a pedra que está
na cabeça da casa, e o peixe corre cheio
de originalidade por dentro da palavra.
Se toco a mulher toco o gato, e é apaixonante.
Se toco (e é apaixonante)
a mulher, toco a pedra. Toco o gato e a pedra.
Toco a luz, ou a casa, ou o peixe, ou a palavra.
Toco a palavra apaixonante, se toco a mulher
com seu gato, pedra, peixe, luz e casa.
A mulher da palavra. A Palavra.

Deito-me e amo a mulher. E amo
o amor na mulher. E na palavra, o amor.
Amo com o amor do amor,
não só a palavra, mas
cada coisa que invade cada coisa
que invade a palavra.
E penso que sou total no minuto
em que a mulher eternamente
passa a mão da mulher no gato
dentro da casa.

No mundo tão concreto.

Herberto Hélder

28.6.05

Le conte de fée le plus court de l'histoire II

A antevisão que gerou a boa reacção.


Tom Zé
Quero Pensar (A Mulher de Bath)

Le conte de fée le plus court de l'histoire


Merel Zwart


Un jour, un gars demande a une fille:
- Veux-tu m'épouser?
Elle répondit:
- Non!
Et ils ont vécu heureux le restant de leurs jours.

FIN


(Na versão original era só o "gars" que vivia feliz para sempre... mas não me pareceu lá muito bem! )

27.6.05

O coração não se gasta


A.

- Mamã, fecha os olhos e escreve aqui o teu nome...
- Tem mesmo de ser com os olhos fechados?
- Sim, é uma prenda surpresa!
- Já está!
- Agora abre os olhos devagarinho!
- Que lindo!
- É para pores no teu computador.

O coração gasta-se

Deus enrolava-nos vagarosamente
para acabarmos entre os seus dedos.
A esse seu prazer chamou tempo
e onde havia dor nasciam cigarros.
Pensou no fogo como sendo belo
de modo a morrermos maravilhados.

in O Tabaco de Deus, Cotovia, 2002

Para além de O Tabaco de Deus, Paulo José Miranda já publicou A Voz Que Nos Trai (Primeiro prémio Teixeira de Pascoaes em 1997) e A Arma Do Rosto, livros de poesia, e Um Prego No Coração (1998), Natureza Morta (Primeiro prémio José Saramago Prize em 1999), Vício (2001) e O Mal (2002), em ficção.

O formato da sua nova obra é-nos familiar. Acede-se através de um link, este. Deixem-se balançar entre cartas, naveguem. O coração gasta-se mas também se regenera.


Adenda: Paulo José Miranda é também um dos convidados do Forum de George Cassiel.

26.6.05

Tom Zé


Proposta de Amor

Quem conhece Estudando Pagode - Segregamulher e Amor pode imaginar o show, o alinhamento, as variações, os urros, as palavras de ordem.

Com um casaco que podia ser Jean Paul Gautier mas que neste cara resultaria sempre numa imagem de sem abrigo, recriando a todo o instante uma encenação de pagode de favela e com muita piada, Tom Zé foi botando discurso contra a exploração das mulheres e das menininhas. Em casa e na rua. Sempre ironizando com a globalização. Intercalando com a defesa da língua portuguesa. E este cara tem talento para ser transparente e sério, rindo e inventando e experimentando muito. Sem nunca perder o ritmo, é claro!

Agradecemos a David Byrne que o relançou quando um prédio de dez andares parecia cobrir seu túmulo.

Foi assim, ontem à noite, no jardim do Palácio de Cristal. Preço: 8 € (menos 12 € que o bilhete para o concerto da Adriana Calcanhotto em Aveiro)


MRF

MRF

Tom Zé com a sua Banda e a cantora Luanda.

A digressão europeia continua. Dia 27/06 estarão na Aula Magna, em Lisboa; dia 29/06, em Loulé e a 1/07 na Guarda. Depois de Portugal, será a vez de França, Itália e Suiça assistirem a este show.

Oiçam mais um pouquinho, tão bonita esta Canção de Nora!


25.6.05

ADRIANA PARTIMPIM, O SHOW


MRF

E aconteceu! Adriana Calcanhotto esteve no Cais da Fonte Nova em Aveiro. Para um show intimista, suave, cheio de simpatia, infantil, colorido, imaginoso. Assistiu ao espectáculo um público direitinho, romântico, que não se lembrou de dançar, brincar, entrar na onda. apenas aplaudiu. muito. ok!

MRF

Adriana e Guilherme Kastrup, senhor da percussão, bateria, MPC e tudo o que puder fazer música. A Banda Dé Palmeira, que também assinava a direcção artística, pareceu feita à medida da menina Partimpim. Conta ainda com Marcos Cunha nos teclados, samples, escaleta, flauta, guitarra and so on.

MRF

O cenário foi construido por Hélio Eichbauer. Aqui a mesa do transformismo.

MRF

Meia e noite e dez
descole
mais um digestivo
na ilusão de óptica...
(Programa, in Cantada)
Só umas perguntinhas: porque é que a organização deste evento, que se insere no programa aveiro em festa, decidiu complicar tanto a vida ao público cercando uma área descomunal à volta do local do show? Seria dramático se no relvado oposto ao palco/lago, os não pagantes pudessem escutar o concerto? E exigir 20 euros por um bilhete para um espectáculo que é organizado pela CMA, não é um enorme abuso? A festa não é decididamente da/para toda a cidade!

Adenda:
o post do Januário, é claro!

Adenda II:
o post do João Oliveira, pela certa!

A Vitória do Pacifista


mgbon

Quando o polícia apareceu em casa ainda tinha terra nas unhas. Eu. Eu tinha terra nas unhas
-- Senhor polícia em que posso ser-lhe útil
(Disse-lhe isto como num filme a disfarçar.)
de enterrar um animal
que procura.
Afinal era o dia mundial da poesia
-- Entre
e eu estava farto de palavreado.
beba um chá.

erva príncipe
(- palavras impuras que tem desenterrado)
misturada com camomila
(- um crime!)
quantas colheres de açucar?
(- olhando as suas mãos diria que é flagrante delito)
então nenhuma. é melhor para o aroma
(- palavras impuras!)
afecta os sentidos
(- insurrectas!)
a língua. queimou?
(- conter a revolução)
pincelar com mel

amaciar a língua
(- erva príncipe?)
misturada com camomila

Psssst

Deixem-me lá pôr a correspondência em dia:

Dos prazeres da vida

- Recebi uma mensagem com estas palavras: de um residente de Aveiro..., espero que gostes. Fui ver e gostei de ouvir este guitarrista. E vocês?
- Já agora, pessoal de Aveiro, no dia 2 de Julho às 16:00 podem assistir à Audição Final da Oficina da Música. O tema deste ano é Viagem ao Mundo do Cinema. E o Joaquim Pavão vai fazer dois workshops de Guitarra Clássica: dias 7 e 8 para crianças dos 6 aos 12 anos, e dias 11 e 12 de Julho para adultos. Tudo na Oficina da Música.

- Ainda no dia 2 de Julho, agora às 21:30, vai acontecer o lançamento do livro Numa Avenida de Merda de Ivar Corceiro. Façam o favor de passar na livraria Navio de Espelhos. Cheguem cedo, vai ser divertido!
Para quem lá esteve em Fevereiro no Encontro de Bloggers, fica o desejo manifesto de vos voltar a ver!

- Lançamentos de livros! É já amanhã, dia 25, às 18:00, na Biblioteca da CM da Amadora, que as poetisas Isabel Fontes (portuguesa) e Malubarni (brasileira) vão lançar Pensamentos de um Diário. Para ficarem com uma ideia sobre as duas leiam o que uma diz da outra, e também espreitem aqui e aqui. E apareçam!

- Logo à noite encontramo-nos no Cais da Fonte Nova para ouvir a Adriana Calcanhoto. (vivam os Concertos e Artes de Rua do Aveiro em Festa! Foram ver o Xarxa Teatre?)

Das obrigações

PS: Conhecem a associação que visa sensibilizar a população para o genocídio de espermatozóides?

E ainda?: Já escolheram o nome para a Agência de Viagens do bin?

21.6.05

Paraísos perdidos


MRF, partida de São Vicente

Hoje, convido-vos a quebrar a rotina, a visitar paisagens novas, quiça a planear as próximas férias. E a proposta é a de um passeio até Santo Antão, em Cabo Verde. Na foto vemos São Vicente, o nosso ponto de partida. E aquela montanha é o Monte Cara. Conseguem perceber o perfil de um rosto na montanha?

MRF

Num Barco fantástico atravessamos o oceano até à Ilha de Santo Antão. A viagem dura cerca de 45 minutos.

MRF

Chegada a Porto Novo em Santo Antão. Não, nenhum destes é o nosso barco.

MRF, Ponta do Sol

A chegada a Porto Novo não pode fazer esquecer o velho porto, em Ponta do Sol. Na imagem, dois pescadores de atum e garoupa, as espécies mais abundantes na costa. Falaram-me dos Invernos difíceis, do mar que fica bravo por causa de umas correntes que vêm dos Açores, da necessidade que sentem de ter barcos mais potentes, da falta de dinheiro e de apoios para os conseguirem, de sobrevivência. O que pescam dá apenas para abastecer o mercado do município da Ribeira Grande.

MRF, Cratera de Paul, 1500 m altitude

Atravessar a ilha implica atravessar a montanha, subir até mais de 1500 metros de altitude e voltar a descer. A Estrada da Corda é a via mais importante de Santo Antão. A estrada corre sobre uma crista morfológica rude e vertiginosa, modelada nas lavas antigas.

MRF, Cratera de Paul, 1500 m altitude

O que é espantoso nesta ilha é que é nas altitudes mais elevadas que se encontra mais vegetação. Os vales são secos e áridos. É quase no cume das montanhas que vemos aparecer pinheiros e acácias.

MRF, Vale do Paul

O Vale do Paul é a zona mais fértil da ilha. O verde domina a paisagem numa terra que quase nunca conhece chuva. Vêm a cascata na imagem? Há uma nascente na cratera de Paul.

MRF, Vale do Paul, aldeia Fundo de Café

Estas são as casas típicas do Vale. Paredes de pedra, telhado de colmo.

MRF, Ribeira Grande

Chegamos agora a outro município. Reparem na construção à esquerda, encravada na montanha...

MRF, Pedracin Village

E de repente, chegamos a este sítio que já avistávamos de longe mas que não podíamos imaginar tão belo!

MRF, Pedracin Village

Pedracin situa-se em Boca da Coruja (Ribeira Grande) e está inserido numa propriedade de 14 hectares rodeados de uma panorâmica paradisíaca. Sabe tão bem sentar neste terraço a beber um bom sumo natural, depois de um mergulho na piscina!

MRF, Pedracin Village

Aqui temos 40 camas distribuídas por 10 casas típicas santoninas. O proprietário/gerente é de Santo Antão. Emigrou e, de regresso à pátria, investiu tudo neste empreendimento. Livrem-se de não passar/ficar hospedado em Pedracin!

Para que não vos falte nada, ficam aqui os contactos:
Tel: (+238) 24 20 20/1
eMail:pedracin@cvtelecom.cv

MRF, Porto Novo

No fim do dia regressamos a Porto Novo para apanhar o Armas que nos levará de volta a São Vicente. Se quiserem muito, e eu sei que querem, deixo-vos ficar por mais uns dias.

20.6.05

Avenidas de Merda


MRF

Schmetterling Triste em Voos Espaçados é um filme sobre um poema do livro Numa Avenida de Merda. Se quiseres ter um exemplar em casa da edição doméstica em DVD deste filme, segue os seguintes passos:
1) Escreve um texto (prosa ou poesia) sobre avenidas de merda, em português.

2) Lança-o no teu blog e dedica-o ao Ivar Corceiro ou vai até ao Bagaço Amarelo e lê as instruções certinhas até ao fim. A verdade é que todos temos uma Avenida de Merda preferida, e a minha, imaginária, é esta:


Outra Avenida de Merda

Não foi tanto o facto de ele estar completamente bêbado, mesmo sóbrio teria aquele ar miserável e rasgado. Mas arrotou quando estava já bem próximo de mim e disse foda-se de desprezo. E depois começou a cuspir repetidamente sois todos uns cabrões sois todos uns cabrões. É claro que me afastei e acho que ainda me lembro daquela impressão de sentir o nariz torcer. Incómodo. Que grande incómodo. Isto dantes não era assim.

E logo à frente, novamente essa vontade de parar de inalar e de cegar. Aquilo é uma ferida com gangrena ou outra merda qualquer. A velha está sentada e geme um dai-me qualquer coisinha. Num relance os olhares cruzam-se. Sente dor, exala dor. Perturba-me essa dor dos olhos. Azuis. Ela foi bonita. Está um calor insuportável. Bebia qualquer coisa.

Atravesso a praça até à banca das gasosas. E então vem outra. Aquela ali é a minha filha, tem o ciclo mas não quer trabalhar. E insiste, persegue-me. Lá em casa não há nada, acabou o gás. Páro e fixo a mulher. Tome lá, mas deixe-me em paz. A filha está sentada num banco, vira e revira um pacote amarrotado de SG Gigante e farta-se de rir sozinha.
- Ela é doente? - Doente sou eu, ela é uma desgraçada, quando rouba é pra cigarros. A doida começa a baloiçar-se e ri mais alto. Fujo dali com a garrafa de água na mão. Novamente na Avenida, tento acender um cigarro. É o saco, é a garrafa que, merda, já está vazia, e este calor. Vou fumar para quê? Mas acendo o cigarro.

Depois da praça a Avenida era bonita, lembro-me de acácias amarelas, do Mercado Municipal, de cores garridas contrastando com gente vagarosa. É quando reencontro o Mercado que percebo que a cidade da minha Avenida morreu. As paredes cinzentas estão lá mas deste lado da rua quase oiço um eco. Do interior do edifício vazio o breu espreita, se estendesse as mãos conseguiria tocar-lhe. Um silêncio enorme numa Avenida agora movimentada, buzinada, atropelada.

Pego na máquina, que se lixe, sou turista. Vou fixar a decadência. E então reparo neles. Velhos secadores de cabelo à varanda. A minha Avenida de Merda tem um oásis surreal. E, esquecendo a sujidade no solo, consigo vê-las, bonitas, sorridentes, a fazer a mise enquanto bronzeiam as pernas compridas, cruzadas, fechadas.

Desperto com um roçagar de chinelas. A mão de um miúdo que chora toca-me ao de leve. A mãe continua o andar rapidinho, subindo a avenida, enquanto o baloiça para cima e para baixo.

[Foto: Mercado Municipal do Mindelo, Cabo Verde]

17.6.05

À escuta #8


Joris Van Daele

Em casa da minha avó todos se sentavam à mesma mesa. Não havia patrões e empregados, adultos e crianças, homens e mulheres. Havia todos à mesa! porque todos trabalhavam.

Eu era a mais nova e tinha um estatuto um bocado diferente porque também estudava e era provável que continuasse a estudar por muito tempo.
Pelo menos era assim que eu sentia que o Narciso pensava.

O Narciso tinha os olhos bonitos verdes bonitos mais do que eu jamais vira e no Verão tirava a camisola e ficava em tronco nú. Era tímido e baixava muitas vezes os olhos quando falava. Amava-me e amava-o. Em surdina. Contra todas as barreiras sociais dramas injustiças azares misérias que inventava. Os olhares meios largos fugidios intensos e ternos davam-nos certezas.

Para poder estar com ele interessei-me por cimento areia água enxada, como fazer um círculo no meio e ir misturando os ingredientes da massa que colava os tijolos nos muros que era necessário construir por ali, galinheiro curral eira pátio quintal e fim do quintal e o outro terreno.

E depois íamos trocando palavras, cautelosamente. Ovídio poeira menina não se suje entrei na desfolhada saiu-lhe o milho-rei? uvas e ramadas vinho americano a massa tem água a mais já me distraí! vou buscar bebidas. Um dia ele pediu-me que o ensinasse a falar francês. A irmã, que tinha ido apanhar laranjas para a Bélgica, acabara colhendo noivo e bilhete de ida sem volta. E o Narciso queria fazer boa figura no casório. Je suis Nicole Robert le chien Patapouf comment allez vous merci na pas de quoi.

Lições de cimento e de francês. que duraram algumas semanas. Só isso. mas nunca mais me esqueci.

16.6.05

A última vontade dos Sábios

Álvaro Cunhal: um funeral com muitos amigos mas sem discursos.

Eugénio de Andrade: enterrem-me vestido de pijama porque morrer é natural.

As suas vontades foram respeitadas.

À escuta #7


Paul Rapp

- Quando saio com ele, as reacções são engraçadas.
- As dele?
- Não, as dos outros, os que o conhecem e a mim não.
- São simpáticos?
- Podem ser. Mas num olhar tens várias possibilidades.
- És demasiado analítica!
- Talvez, mas diverte-me observar o que me rodeia.
- E então, quais são as possibilidades?
- Há quem pense "coitadinha, está a ser enganada", há quem me odeie ou despreze de imediato - "mas esta tipa não sabe que ele é um homem casado? e que é a enésima amante deste sujeito?" e há quem me olhe pensando "se ele conseguiu, por que não tentar também?".
- Mas isso é horrível, se eu sentisse esses olhares, ia sentir-me tão desconfortável!
- Às vezes sinto, até porque os compreendo, eu pensaria a mesma coisa se visse aquele sujeito com "mais uma".
- Mas então, como diz o brasileiro, cai fora!
- Não percebes. Somos apenas amigos, ou podemos vir a ser. Às vezes, é claro, dormimos juntos.
- Portanto, não é ele que te engana, és tu que te andas a enganar...
- É mais isso!
- Ele ser casado não te incomoda?
- Não, e gosto que ele goste da mulher. Já não há primeiros dias no resto da minha vida. Nesta idade, todas as pessoas já viveram ou prosseguem a história a que chamam "a minha vida".
- E como respondes aos conhecidos que lançam olhares cobiçosos?
- Não respondo, penso "coitadinho, estás enganado".
- Bem, quem cai numa dessas pode cair noutras.
- Achas? Eu não. Por acaso acho que é mesmo daquelas coisas que só se quer viver uma vez.

Sedução


Sokolsky

A sedução talvez seja uma arte. Eu acredito que é quase um poder inato ou então uma reminiscência do Homem no seu estado mais primário. Supostamente mascarado, supostamente mais elaborado, o homem quando seduz utiliza a verdade dos animais. Expondo as penas de pavão ou o canto de acasalamento, o Homem é mais Animal quando seduz e, por mais paradoxal que possa parecer, mais verdadeiro.

Bastet do Sol&Tude

15.6.05

A técnica da máscara

Um look natural é agora mais bonito
Slogan da Estée Lauder

Eliminámos o mundo verdadeiro:
que mundo restou?, talvez o aparente?...
Não!, ao eliminarmos o mundo verdadeiro
eliminámos também o aparente!
Nietzsche, Crepúsculo dos Ídolos


Somos um discurso de sedução.

Máscara Sim


Sokolsky

E nós Bloggers, usamos a Técnica da Máscara ou não?

Eu costumo falar em 2 segundos de antecipação que permitem, num ápice, decidir sobre a acção e agir sobre a 'espontaneidade'.
Enquanto blogger, creio demorar mais do que os tais 3 segundos, e advogo das máscaras que "não existe melhor máscara que nos esconda do que aquela com que nos mostramos". A verdade oferecida é sempre tão inverosímil que funciona melhor do que a mais arquitectada mentira.
MJM

Não sei se a técnica é a da máscara, mas a blogosfera é um palco especial. A virtualidade confere-lhe o cunho confidencial de quem representa incógnito. A arte que demonstra chega a camuflar a própria autenticidade. O trigo e o joio andam juntos, quase sem se reconhecerem.
Amaral

Eu acho que todos os bloggers têm uma máscara de vez em quando, basta ver que há certos aspectos das vidas dos ditos bloggers que são meio escondidos ou camuflados. O mais engraçado é essa ideia de estar incógnito. Não sei até que ponto isso é mesmo assim...
Ananda

É possível, sim senhoras.
Pessoalmente, o retrato espelhado no 7 Meses ao início era mais fiel do que agora.
kimikkal

É possível. E, para além da máscara, o uso do coturno também se manifesta com frequência.
OLima

A blogosfera é um mundo diferente do teatro.
Pelo menos, assim o vejo, assim o sinto.
Quanto às máscaras, quem não as usa, mesmo que de forma inconsciente, nesta e noutras situações?
Há aqui de tudo, como na farmácia.
rita

É inevitável que a usemos.
Como diria o Régio..."há coisas que terei pudor de contar seja a quem for"!
mfc

Eu uso... um bocadinho.
80% do que escrevo é verdade. O resto... é do "K@".:-)
Resta saber o que é que é "80%" e o que é que é "o resto"...!
He He!
K@

Se partirmos do princípio que a vida é um palco, todos usamos, bloggers ou não!
Deves, como eu, ter lido Goffman! Está lá tudo...como se fosse impossível inventar algo de novo nesta matéria!
PS: acabei de pensar que vou escrever um post sobre Goffman: "a apresentação do eu na vida de todos os dias".
Maria Heli

Não estamos sempre mascarados?
francis

Agora que penso nisso, sim, quase sempre.
batatas

Pois é, eu cá acho que sim, apesar de tb estar identificada com nome.
Às vezes a máscara pode estar tão colada que nem damos por isso.
ângela

É possível usar essa técnica nos blogs. Mas analisar os blogs pelas técnicas do teatro, penso que seria reducionismo inútil. Há que fazer-se uma análise a partir de seus elementos próprios.
Santos Passos

Sua perguntinha é providencial...pensando aqui.
Ilidio Soares

Máscara Não


Barreira da Máscara
MG

E nós, bloggers, usamos a Técnica da Máscara ou não?

No meu caso, posso dizer que não... há omissões, "censurados", mas que certamente não existiam se o meu blog (estou só a falar do meu caso) não se tivesse tornado mais público do que eu desejava.
Batatas

A vida é um baile de máscaras. Acho que li isto em qualquer lado.
Não me parece que eu fosse capaz de “a construir”.
Papo-seco

Nós não. Nós somos a antítese da máscara. Usamo-la para nos podermos mostrar mais. Isto digo eu que sou só uma descendente da Brites, claro...
Didas

Eu não. Nem no nick.
Angela

Eu acho que a maioria não usa mesmo máscara alguma.

Mas já vi algumas...
NILSON

14.6.05

Parece que me esqueci...

... de passar o questionário de cinema a alguém. Oh Ivar Corceiro, vais ter que desculpar mais esta, mas o público tem de conhecer as tuas referências. Afinal, já lá vão quantas curta-metragens?

Na última newsletter, a notícia era a seguinte: Há um novo filme acabado, baseado no poema homónimo do livro Numa Avenida de Merda: Schmetterling Triste em Voos Espaçados, com música dos Nordheim e tradução para inglês de Nuno Correia. Este filme já foi seleccionado para o Videolab 2005, no próximo mês de Julho em Coimbra, juntamente com Skhízein o elevador.

Ivar, passo-te a palavra.

À escuta #6


MRF, Teatrinho

- Eu também quero ser a Branca de Neve!
- Mas não pode haver duas...
- Pode, porque quem inventa a história agora sou eu...
- Tá bem, vamos ser duas irmãs Brancas de Neve!
- Mas eu não quero ser o Príncipe! Eu não sou rapaz.
- Faz de conta..., mas o Princípe também pode ser invisível...
- Eu sou o Príncipe. Mas só levo uma Branca de Neve no meu cavalo..., coitado do cavalo!

- Espelho meu, espelho meu, existe neste reino alguém mais belo que eu?
- Não.
- Não?
- É só à segunda vez que ele diz que sim.
- Espelho meu, espelho meu, existe neste reino alguém mais belo que eu?
- Não.
- Então?
- Oh, eu posso mudar a história!

- Comes a maça e adormeces...
- Ai, vou desmaiar!
- Onde está o Príncipe? Tens que nos dar beijinhos para acordarmos.
- Eu dou-vos é medicamentos!


[Teatro a quatro: A. e S., 5 anos; C. e I., 6 anos]

Questionário de Cinema

As meninas do Sentidos e do Blog do Desassossego (vejam como estes nomes são bonitos), enviaram-me este questionário:

1-Qual o último filme que viste no cinema?
- Uma Casa no Fim do Mundo, de Michael Mayer. O argumento é escrito pelo autor do romance original, Michael Cunningham. Gostei imenso de todos os livros dele, As Horas, Sangue do meu Sangue e adorei Uma Casa no Fim do Mundo. Se já leram o livro, enfim, sei que não vão resistir a ver o filme. Mas se não o leram, por favor não vão ver o filme. Passem por uma livraria e comprem a história original.

2- Qual a tua sessão preferida?
- A das 14:30 horas. No Cinema Oita, o projeccionista vinha perguntar-me se queria intervalo, era muitas vezes a única na Sala. Egoísmos que foram castigados, o Cinema encerrou.

3- Qual o primeiro filme que te fascinou?
- O Esplendor na Relva de Elia Kazan. Tinha 13 anos. O Warren Beatty, com vinte e poucos anos na altura (o filme é de 1961), ajudou bastante à criação do efeito.

4- Para que filme gostarias de te ver transportado(a)?
- O Quinto Elemento, de Luc Besson. Adoraria assistir ao concerto da Diva naquela supernave espacial.

5- E já agora, qual a personagem de filmes que terias gostado de conhecer um dia?
- Jacques Mayol, do Grande Blue, mas melhor teria sido conhecê-lo em vida. Nikita e Léon. Todos eles personagens de filmes de Luc Besson.

6- E que actor (actriz)/ realizador(a)/ argumentista/ produtor(a) gostarias de convidar para jantar?
- Por acaso preferia que fossem a eles a fazer o convite...Free Image Hosting at www.ImageShack.usFree Image Hosting at www.ImageShack.usFree Image Hosting at www.ImageShack.usFree Image Hosting at www.ImageShack.usFree Image Hosting at www.ImageShack.usFree Image Hosting at www.ImageShack.usImage Hosted by ImageShack.us

13.6.05

Adeus


Chantal Heijnen

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.

Eugénio de Andrade

Foto dedicada



Morreu Álvaro Cunhal. E, sem nada preparado para escrever, pensei nesta fotografia do Henk Braam, um dos meus fotógrafos preferidos. Existirão sempre vampiros que comem tudo.

Kauberdi ou Cape Vert

O bin ofereceu-me esta foto de uma menina senegalesa que sorri. Mas o ângulo escolhido pelo fotógrafo evidencia o penteado que mãos hábeis e rápidas dedilharam e compuseram. Lembrei-me logo da Fhatima.


Senegal de Alexandre Aubry

A Fazedora de Tranças

Eu encontrei a Fhatima na Ilha do Sal, no famoso passeio que separa os hotéis do extenso areal, em Santa Maria. Ela ficava sentada num banco durante horas, ao sol, e discretamente ia perguntando às turistas se não queriam que ela lhes fizesse uma trança. O seu traje era distinto e tinha um sotaque particular. Imaginei que fosse senegalesa ou nigeriana. Um dia acabei por conversar com ela, vinha do Senegal.



Cabo Verde é visto como um país de emigrantes mas a verdade é que, em datas diferentes, entre os anos 80 e 90, e em particular nos últimos cinco anos, têm entrado em Cabo Verde muitos senegaleses, nigerianos, gambianos, serra-leoneses e bissau-guineenses. A partir de meados dos anos 90, resultante de acordos de cooperação entre este país e a China, também os chineses começaram a se instalar aqui, dedicando-se à restauração e ao comércio (são cerca de uma centena em todo o arquipélago).

São os imigrantes oeste-africanos que têm gerado mais celeuma. A verdade é que, como quase todos os imigrantes em qualquer país deste mundo, não são desejados. A sua postura e comportamento têm sido muito criticados. Acusam-nos de arrogância, de desacatos, de perseguição aos turistas.

É verdade que nas praias se é constantemente assediado por vendedores senegaleses de artesanato. Mas o que os cabo-verdianos não gostam mesmo é da sua aparente incapacidade de integração. A imagem que nos transmitiram é a de que estes imigrantes não se relacionam com a população local e de que os temem porque, havendo um problema, se unem. Um episódio ocorrido há pouco tempo tinha assustado e marcado a população. Na sequência da detenção de um senegalês, a esquadra da polícia foi cercada por dezenas de conterrâneos, um automóvel da polícia foi destruído, a situação ficou completamente fora de controle. Só a intervenção da Polícia Militar pôs termo ao cerco. Houve tiroteio nas ruas e depois iniciou-se uma perseguição cega a todos os senegaleses a residir na Ilha. Disseram-nos que alguns cabo-verdianos chegaram a acolher secretamente alguns destes imigrantes que, mesmo inocentes, não escapariam à expulsão do país.

O número de imigrantes ilegais é elevado. Entram no país clandestinamente viajando em embarcações que acostam numa das ilhas do arquipélago. Com frequência surgem notícias de mais uma embarcação encontrada pela Polícia e do repatriamento dos seus passageiros.

A questão que se coloca é se existe ou não um preconceito racial dos cabo-verdianos em relação aos negros continentais. Independentemente da origem, a todos chamam, de forma pejorativa, mandjacos. Curiosamente, os mandjacos eram uma tribo da Guiné-Bissau, e o que senti foi maior aceitação dos guineenses face aos imigrantes de outras origens.

Alguns dos imigrantes com quem falei queixaram-se da Polícia e dos Serviços de Emigração e Fronteiras (SEF), que alegadamente estariam predispostos a culpar e condenar rapidamente, mesmo que a consequência fosse o repatriamento.

São notícias, estórias, caminhos, problemas, universais. Chegará alguma vez o dia em que aquela ideia de Eça de Queiróz, a i/emigração como força civilizadora, vai prevalecer?

Não imaginamos a Fhatima envolvida em desordens e violência. Veio para Cabo Verde porque no Senegal não há trabalho. Dizia com um ar sério e triste: faço tranças e no Senegal há muita concorrência. Tinha chegado há três meses, conversamos em francês porque ainda não compreendia o português, falava apenas uma ou outra palavra de crioulo.

Bon courage, Fhatima!